Os parágrafos inacabados...

É aqui que junto o que alguns conhecem e muitíssimos desconhecem. A minha tentativa idealista de ser apenas palavras.
O último texto que esteja por aqui poderá dar a ideia que deixei o blogue vogar em ondas mansas, mas na verdade, neste blogue as datas não ditam regras, apenas escolhas de arquivo.

Aos que me conhecem um abraço. Aos que me ficarem a conhecer as boas vidas.


Insanidade consciente

Acordei em sobressalto. Ondas gigantes, enraivecidas, engoliam areias e rochedos como se fossem conchas abandonadas. E de súbito, porque os pesadelos são peças de teatro constituídas por fragmentos dispersos, tudo se aquietou...
Mas via os meus registos de escritor empaparem-se... O esboço do meu livro desfazia-se na espuma mansa que restara da investida das ondas. E os meus olhos tentavam apossar-se de cada palavra que se desvanecia, incapaz de me apropriar dos meus próprios parágrafos.

Abri os olhos. O meu coração ainda não cabia no peito. Toquei-te muito ao de leve com as costas da minha mão na tua pele nua, sem desejar despertar-te. Como que a assegurar-me de que ali estavas. Como se fosses tu, cabelos, olhos, nariz, boca e corpo, as páginas perdidas do meu livro.

Estavas ali, inteira. Acalmei. Vim ao de cima do pesadelo, submergi na realidade e na luz que entrava pela janela. Tornei as paredes do quarto opacas. Deixei de sentir nos pés a areia molhada. E encostei a cabeça aos teus cabelos ondulados que se espalhavam pela almofada.

Cheguei-me mais a ti. E repentinamente a água gélida do oceano invadiu-me aos borbotões e eu soçobrei nas ondas gigantes de novo e gritei. Gritei como nunca o fizera até aí. Gritei sem som. Porque ninguém me ouviu. Gritei como se fosse a última vez que pronunciasse o impronunciável.

O teu cadáver gelado contra o meu corpo fendeu para sempre a minha mente do meu ser. Emudeci, fiquei vítreo. Ficámos assim horas e horas a fio. Tu, gelada, ausente, e o calor do meu corpo a aquecer-te até nada restar da minha razão. Apodrecemos. Mas nada disso me importou. Os teus belos cabelos ondulados colavam-se-me, enrodilhavam-se nos meus dedos. E as suas ondas eram as páginas, as palavras perdidas do livro por acabar. E os sábios do mundo decretaram-me louco. Mal sabendo que existo nas memórias do que foste.

Circuitos fechados

Passou pelo ginásio tentando deixar lá as preocupações. O dia fora excepcionalmente cansativo. Os telefones não paravam, o telemóvel vibrava a todo momento no bolso do casaco, o ruído surdo, incessante e insuportável do escritório invadia-lhe os tímpanos como se tudo fosse parte de um teste de resistência para todos os ocupantes da imensa sala de paredes falsas.
Open space. Um modelo que sempre associara a calma até se ver submerso nele.
Talvez fosse por ser sexta-feira, pensou, e o cansaço acumulado não lhe permitisse a fuga mental mesmo com música para relaxar - tinham-lhe garantido que aquele tipo de sonoridades o distrairiam o suficiente para reinventar o open space.
Alegara uma qualquer medida médica e o termo "médica" ressoara na mente do chefe que não prestara atenção ao resto e por norma não era contra qualquer tipo de sons.
Por vezes fazia pausas compulsivas. Curiosamente a máquina do café ficava do lado de fora do open space. Escapava-se deste e atravessava o corredor, entrando numa pequena sala sem definição estética. O líquido escuro caía no copo de plástico e depois o silêncio total... Aproveitava por alguns minutos o único sofá a que a sala tivera direito e pouco depois a rotina caminhava direita a ele, novamente.
Profissionalmente gostava do que fazia. Mas reconhecia que a vida estava a adquirir uma rotação com que não contara. E recordava-se dos pequenos hamsters, nas lojas de animais, correndo, incessantemente nas suas rodinhas, sem chegarem a lado nenhum.
"A lado nenhum" talvez fosse uma injustiça. A casa era maior, o carro era maior, a família aumentara. É verdade que os via menos - ou talvez estivesse apenas demasiado cansado para os enxergar - mas isso era o mesmo que aceitar um qualquer lugar comum. Toda a gente se vê menos ao longo da vida. Até nos colegas reparava menos. Estava apenas a tentar dar um pouco mais à família e a ele próprio.
Estaria a querer acelerar o processo? Dar mais em menos tempo? Não o sabia com exactidão e não queria pensar nisso excessivamente. Mas em prol da saúde, ou de alguma mensagem subliminar, decidira inscrever-se num ginásio. Era uma maneira saudável de pensar em algo mais do que trabalho casa, casa trabalho, e o médico de família perseguia-o há anos com a ideia de que se exercitasse.
E todos os amigos estavam a ir para ginásios. Por isso falseara um pouco o exame médico com mentiras inocentes, pequenas omissões, na verdade. Todos entraram no jogo, os amigos que o avisaram que pormenores em excesso atrasariam a inscrição, o médico que despachara a consulta e ele com as suas omissões.
Nessa tarde estava a saber-lhe bem a aparente pausa. Deixou os pensamentos errarem enquanto "fazia" bicicleta. Como tinha o sentido do absurdo das situações, e o ginásio lhe surgia desmultiplicado em dezenas de espelhos, não podia deixar de sentir que saíra de um open space para entrar noutro.
Preferiu abstrair-se. O cansaço sempre fora um bom método para a civilização se tornar impotente contra as amarguras. Quando dói não se sente mais nada. E o ritmo que se impusera começara a doer-lhe. Sentiu-se tonto, sonolento. A dor no peito surgiu, incómoda, inflexível. Num ápice, os espelhos do ginásio desapareceram e à sua frente estava um vidro sujo, pejado de dedadas. Do outro lado, um imenso hamster observava-o, curioso.

Torpor mortal

Nada sinto, a vertigem é real, a convicção de que não sou capaz de verter uma lágrima entrega o corpo a uma pausa forçada. Um coma induzido de todos os sentidos. Não traduzo as razões, não as quero traduzir.
É de noite e os pilares de cimento são imensos, projectando sombras disformes que ocultam a luminosidade a cada pilar que por mim passa. Queria esconder-me por detrás de cada um deles, mas derroto a covardia eminente e avanço até ao fim do túnel onde a luz incendeia as pupilas.
Rostos, casacos, malas, sapatos que caminham contra mim e em que tento não reparar. Vejo-me reflectida nos olhares... Sou o oposto do real. Sinto-me um espectro saído das trevas que atravessa uma existência inerte, inserida num enorme cenário de papelão, colorido e envernizado, mas ainda assim inerte.
O coração deles bate coordenadamente. O meu está a estagnar. Não sei contar o tempo, procuro uma lógica neste labirinto de claridade e gente e vagueio sem me recordar do meu propósito inicial. Cada passada é mais densa que a anterior.
Os meus olhos, que interessam os meus olhos? Porque os observam? Porque me encaram, se desejo passar despercebida? Como abutres, devoram mágoas, pressentem a mais ténue discrepância na encenação e eu sou um contra senso neste palco.
De novo o mesmo corredor, as mesmas escadas... O que faço aqui? A luz atraiu-me qual borboleta à lâmpada que brilha na noite fria... mas não há calor. Não... A temperatura do meu corpo desce segundo a segundo e apenas o espanto inicial mantém alguns intervalos irrepreensíveis na respiração que afrouxa.

"Tornei-me num sinónimo vazio de mim mesmo, os despojos de uma batalha que se iniciou no centro de ti. Foste o teste, a impunidade, a roleta russa. Ainda tens tanto para viver, tudo que já vivi e ainda mais. Poucas oportunidades tenho, se te empurrar tu apenas cais... Se me empurrares esfumo-me" - pensaste.

Foi uma aritmética magistral. Indestrutível. E minha a juventude foi a desculpa perfeita para uma saída irrepreensível quando te despediste de mim.
Mas quando já te ias embora paraste, viraste-te, e encurtaste a distância entre nós tão rapidamente que me assustei. Sussurraste algo que o ruído ensurdecedor do comboio a aproximar-se não me deixava entender. Amo-te, escutei.
E sorria, quando as tuas mãos contra o meu corpo me empurravam para a linha.

Telemóveis

Os telemóveis são, actualmente, o brinquedo preferido dos portugueses. Graças a eles passámos a entrar pela vida adentro da pessoa ao nosso lado, seja na rua, no autocarro ou numa loja, ficamos a saber detalhes perfeitamente entediantes ou verdadeiramente escabrosos, entre explicações sussurradas ou gritos.
Entraram nas suas vidas para ficar, como a batata ou o arroz. Não há horário televisivo que não tenha um anúncio a uma qualquer operadora, marca, tarifário ou inovação. O mesmo se passa ao folhearmos uma revista ou apenas ao passearmos. Não há como fugir. É uma propaganda que nos persegue sem dó nem piedade. E habituados a ela, consideramos normalíssima toda esta informação, que nos leva ao desejo desenfreado de possuir ainda mais um telemóvel. As lojas enchem-se de possíveis compradores, como se de um artigo de primeira necessidade se tratasse.
É mais barato que trocar constantemente de carro, com a facilidade de vermos os nossos aparelhos transformados num porquinho cor-de-rosa ou num moderno mini computador em pouco segundos.
E se de início os toques que fugiam à norma eram apelidados de ridículos e os infractores olhados de lado, rapidamente as áreas de marketing das marcas e das operadoras perceberam que "sair da casca" era uma boa forma de ganhar mais uns trocos e rapidamente inverteram as tendências. Multiplicam-se as ofertas de serviços, imagens ou toques a condizer com a personalidade do utilizador. Os adultos perdem-se e os adolescentes e as crianças adoram.
O telemóvel é reduzido no tamanho mas as possibilidades são inúmeras, desde as diversas formas comunicar - as mais óbvias - à máquina fotográfica - a mais popular - o pequeno aparelho tornou-se num gigante que a todos enfeitiça deixando as operadoras e as diversas marcas bastante felizes.

As nossas
Crianças e a Internet

Tenho vindo a sintonizar-me com uma realidade que nos media apenas surge em notícias que tenham o impacto do "sucedeu dramaticamente sem que se imaginasse". Ou seja, "debate-se" o assunto quando a criança já desapareceu.
Como adulta, sei exactamente o que procuro ou me interessa quando navego pelas águas aparentemente nítidas da Web. E sei os contactos que desejo, ou não, ter em programas de conversação - como o Messenger, por exemplo, um dos mais banais. Os pais têm uma noção muito vaga da face negativa - que pode ultrapassar o aspecto positivo - que a novidade trará aos filhos, ainda que, alguns adiem instintivamente apresentar-lhes este novo mundo.
As escolas, assim que se inicia o 5º ano, exigem trabalho de pesquisa que também integre a Internet como ferramenta. A intenção é excelente, mas raramente se encontra inserida num projecto sólido que ensine as crianças a serem cuidadosas. E estas navegam a sério e com desembaraço em pouco tempo. E navegam facilmente para longe da costa. E muitos pais não estão cientes ou até preparados para se aperceberem disso. Alguns porque pertencem a gerações que se mantiveram afastadas da informática, outros porque olham para os filhos como crianças que numa banca de jornais só espreitarão as revistas infantis.
E a Internet é uma imensa banca de jornais e revistas com todo tipo de temas à disposição. E infelizmente, muitas das imagens irão ser nocivas, além da facilidade de contacto com seres que pretendem algo mais dos nossos filhos, se não nos mantivermos atentos.

Quem bate em quem?

A violência sobre a mulher tem sido amplamente debatida.
Mas nesta questão, continuam a ser deixadas para trás as crianças. E é imperativo que exista a noção de que a violência é também praticada em larga escala contra estas. Com a nossa autorização. No seio da própria família.
Continua a ser não ser considerado incorrecto o uso de violência física como parte integrante do ensino de uma criança. Como se o uso da força, por ser aparentemente educativa, possa perder a sua conotação de violência.
Parece-me inexplicável que sendo grave, e até passível de ser punível por lei, um adulto agredir outro adulto - de massa corporal relativamente similar - seja no entanto, perfeitamente aceitável, que esse mesmo adulto utilize a agressão física para disciplinar uma criança, cuja massa corporal é, muito provavelmente, um terço ou um quarto da sua.
O que muda neste quadro? A forma psicológica de encarar a violência que, apelidada de disciplina, se torna aceite por todos? É inadmissível que esta situação, que ocorre em inúmeros agregados familiares, continue a passar em branco. Uma realidade constantemente desculpada com a justificação de que se utiliza a força de forma controlada.
Quando chegamos ao fundo da questão, no entanto, deparamo-nos com crianças que sofreram agressões que já ultrapassaram há muito os nossos limites psicológicos do que é aceitável. Ninguém se dera conta porque as crianças, muitas vezes, se transformaram em seres invisíveis. Para quantas pessoas é comum o filho do vizinho que grita desalmadamente porque... "por alguma razão será"?
Todos ficamos profundamente chocados se presenciarmos um homem a bater numa mulher. E é comum que alguém intervenha. Mas se um pai bate no filho, a sensação de desconforto é calada e é raro interferirmos. Vindo ao de cima a ideia enraizada de que não nos devemos intrometer na educação que cada um dá à sua família.
Assim se pensava em relação às mulheres. Havia o dever de "educá-las", se necessário, pela agressão física. Estas passavam das mãos, pouco delicadas de um pai, para as de um marido que as manteria debaixo da mesma forma de violência. Não será afinal a herança desta mentalidade que mantemos para com as crianças? Persistindo na despenalização de "gigantes" que de mão em riste educam... ou matam?

Desemprego e/ou o desespero


"Centro de emprego" - Instituto de emprego e formação profissional - não é mais do que um nome e provavelmente se lhe chamassem de "centro de desempregados", honraria melhor o apelido. O semblante dos que chegam demonstra bem o que vai na alma de cada. A derrota inunda o ambiente ainda antes de serem dadas as informações necessárias para que os formulários fiquem completos. E será que ficam? É-se reduzido, à pressa, a um código identificativo retirado de uma listagem de profissões sempre desactualizada.
Dos vários - ou nenhuns - empregos à disposição, um dos mais recorrentes é o de "coveiro". Mas por ali, as pessoas aparentam já ter assistido ao próprio enterro e pouca ou nenhuma vontade de enterrar mais mortos. Vive-se um período em que entrar no "Instituto de emprego e formação profissional" apenas significa estar desempregado.
A sala enche-se diariamente de um desânimo depressivo, sem dó nem piedade para os que entram e para os que já lá estão. Toda gente se mantém, no entanto, atenta à numeração que se sucede em visores electrónicos - algo se modernizou - que lhes indica quando chegará a sua vez. Só que já chegou. Já receberam a carta de despedimento, o já "não precisa de vir amanhã", o já "não precisamos mais de si". Já se reuniram com o rosto sombrio da incredulidade e insegurança que os perseguirá durante meses. Já foram facilmente descartados, acusados, pisados ou anulados. Muitos foram reduzidos a emoções caóticas que ainda não sabem gerir.

Ir ao "centro de emprego" é um acto que se torna compulsivo após a morte de uma etapa da vida profissional. Não há fuga. Tem que se enfrentar toda essa burocracia mesmo que ainda não tenha sido possível assimilar a situação. Por isso quando ali chegam ainda tentam disfarçar. Mas fingem tão mal que é palpável a indiferença que aparentam perante o óbvio que todos partilham, o medo. Os números passam. Vão enrolando ou dobrando, vezes sem conta, a senha que lhes calhou. Bem vestidos, mal vestidos, assim-assim... Mães com crianças. De todas as raças, de todas as idades, de todos os credos.
E desses, raros são os que reparam numa outra área emocional, reservada aos "veteranos" que aguardam sem reacção por mais uma reunião - ao serem chamados pelos administrativos do centro, assemelham-se a um rebanho cordato - em que lhes será demonstrado pela terceira ou quarta vez que um desempregado de longa duração "não desconta para a segurança social" e que isso "é uma mais valia para a empresa empregadora".
Não fosse a empresa empregadora preferir recibos verdes, já ter gente a receber parte do ordenado "por fora" e a preencher falsas "ajudas de custo" e não precisar desse género de mais valias. Não fosse já um dado adquirido que no "centro de emprego" se tem que comparecer e o resto são papéis para arquivo.

Des (Humanidades)

Atropelada. Não me ergo. Deixei de saber erguer-me. Belisco-me - vi demasiados filme - afinal as pessoas de carne e osso também se beliscam para perceber se a realidade existe. Afinal não é um sonho, é provavelmente um pesadelo. Muitas pessoas, todos desejam ver-me. A fama em forma de punhaladas no peito. Respiro mal. Esfuma-se tudo, as caras, os sons, a curiosidade. "Nome? morada?" As ruas de Lisboa... Não sabia que podiam doer tanto. "Nome, morada... idade?" Porque é que ele não se cala? E as ruas de Lisboa doem, moem. Deixe-me ficar calada. Só um bocadinho.
Gente, demasiada gente, uma multidão de camas que não são camas. Demasiada gente. Custa-me tanto respirar. Não vejo sangue em mim. Não vão dar por mim. Mas reparam porque alguém entrou e grita, "Ela pode ter hemorragias internas, doutor!" Tanta gente, tantas macas. "É giro não é? O médico?" Dói tudo. Um sorriso por se ouvir algo que não é habitual nela. "Sim mãe, é giro", imagino que lhe respondo. Salvou-me a vida. Eram demasiadas macas, demasiada gente. O sangue alastrava, invisível... A roupa desaparece. Cortam-na. Não faz mal. Já não vejo nada. "Mude-se para aqui". Deve ser para outra maca. Uma voz feminina, metálica, ordena-me o impossível. Não consigo vê-la, apenas a oiço. Não consigo. Não faz mal. Paciência.
Começam os tubos. Não os sinto entrar. "Vai ser operada" Ainda bem! A anestesia adormece tudo.
Depois começa a verdadeira realidade. O após. A dependência dos outros. Sangue. Soros. Tubos para tudo. Até para vomitarmos. Despem-nos. Lavam-nos. As arrastadeiras. A urina nos lençóis, mudados conforme a disponibilidade ou as emoções do turno de enfermagem. Alguns desses seres humanos - rio-me - escolheram uma profissão que nunca se lhes moldará à carne. A urina nos lençóis torna-se gelada e finalmente as lágrimas escorrem.
Dói tudo, está tudo revolvido, não se bebe, não se come. Os tubos saram-nos. Mas não mudam lençóis. E cede-se.
Tudo gira em torno de ritmos certos. À hora certa, as injecções certas, os medicamentos correctos. As visitas da equipa médica. A nudez sem aviso. Retiram-me os lençóis como se não estivesse ali. Já não faz mal. O irreal comanda. Até o cheiro que vem da cozinha e me dá náuseas parece pertencer a um outro mundo. As conversas tardias sentem-se. Pesadelos. Gemidos.
Somos coisas. Coisas que pedem um auxílio excessivas vezes negado. Alguém ao nosso lado pergunta "Queres ajuda?". São os seres deitados ao nosso lado, em camas iguais à nossa que se entre ajudam. Um gesto, um sorriso. Uma anedota. Não há doutoras ou prostitutas. Jovens ou velhas. É uma amálgama de seres que precisam desesperadamente de se sentir gente.

Os tubos vão desaparecendo. Uma a um. Já há bolachas na gaveta. Mas abdico delas. Pequenas baratas invadiram-nas primeiro. "Uma barata no tecto em cima da tua cama! Aí vai ela... Espera! Vai bater com os cornos!". Um esgar, é impossível não ter vontade de rir. Hoje as baratas. Ontem o pequeno rato dançarino. Comenta-se que durante a noite teria entrado na cama de alguém. Usou-se insecticida para "desratizar a situação". Como não há nada de novo e a rotina é sempre a mesma e o rato torna-se-me numa mini atracção neste circo de loucos. Parece um hamster. "Isto é que são ratos?", penso, "Olá, pequeno rato".

Numa cama morre alguém. Desinfecta-se tudo. A vida - a dos outros - segue em frente. Lá muito ao fundo, e é tão perto e tão longe, alguém que se mantém sempre mudo fixa uma arrastadeira, negando-a. Afinal enganou-se. Um erro fatal quando se é uma coisa. A idade avançada tolheu-lhe o pedido rápido. "Afinal não queria... É mesmo porca!", conspurca-nos a todas a voz de uma das "nazis".
Catalogara-as a todas. Assim que as dores são aceitáveis, o vazio que decorre entre visitas dá-nos um poder de observação extremamente aguçado. Até a médica estagiária fora catalogada. Miúda acanhada perante nós. Porque as temidas eram as enfermeiras. Observavam-se subornos - pequenos presentinhos - de mulheres que tentavam obter "melhor" tratamento. Catalogara os turnos, as mulheres de bata branca. Algumas, poucas, eram pessoas a sério. E quando se está à mercê de todos, uma pessoa a sério é imprescindível. Outras, secas mas eficazes. Uma ou outra... real. Aquela ali, aquela... era sempre alegre. E as "nazis"... neuróticas que achavam que um dia já tinham estado também numa cama a estagiar para coisa, e isso lhes dava o poder de nada sentirem.
Talvez por isso... nunca tenha esquecido os cuidados intensivos. Estava-se entre a vida e a morte mas havia por lá gente a sério. Seres humanos, escrito a maiúsculas....


Dezembro de 1985. Lisboa.

Urgências. Porque é urgente. Outro hospital. Outras paredes sujas de apatia. Um silêncio diferente porque se está na periferia. A letargia contagia-se a todos os seres que observo. "Tome..." - bebo o líquido amargo - "Já está? Boa tarde...". Não há um olhar.

Janeiro de 2005. Barreiro.

Indiferença

Os projectores que iluminam as arcadas da Praça do Comércio ferem-me a vista. Só abrando o ritmo longe do seu alcance, para poder observar o desenrolar dos preparativos para a passagem do ano. Um café em dias especiais como os que se vão seguir, custa um euro e meio numa tenda qualquer disfarçada de esplanada da moda.
Mas em noites vulgares, como quando por aqui passo, não me interessa porque está fresco e nem sequer bebo café. Faltam poucos minutos para o barco partir. Tonalidades coloridas invadem o património da cidade. A todo momento, e porque é Natal, espero que surja um daqueles anúncios a créditos, casas, electrodomésticos.
Revivo saudosista o encerramento do "Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura", em que misturada com a mole humana que invadiu o Terreiro do Paço, assisti ao mais belo fogo de artifício que permanece naquele conceito um pouco gasto que dizem ser o nosso imaginário. As festas, fossem quais fossem, eram mais a sério. Não sabiam tanto a atordoamento mental. Estava-se ali e pronto. Não se cogitava se o metro devia ou não esventrar a cidade, se esta estava ou não esventrada, ou se os barcos que ali atracavam eram carcaças envelhecidas.
Os barcos. Queixam-se agora as gentes que não se pode sentir o vento ao vivo. Mas o progresso tem um preço. E há quem prefira uma viagem curta e confortável, a sentir o vento, porque às onze da noite já se está demasiado esgotado para pensar em mais alguma coisa que não seja metro, autocarro, metro, barco, autocarro, casa.
Abram-se as janelas depois em casa e sinta-se o vento e a noite. E dê-se a volta ao mundo durante algumas horas de sono que adiam o dia seguinte. Depois recomeçará tudo novamente. Sabido que é, que os amanhãs cíclicos são a mais pura das verdades. Agora. Que antes não era nada connosco. Não fazia parte do passado ou do presente, e o futuro era muito lá ao fundo.Víamos as rugas apenas nos outros. Mas a realidade é que não víamos nada. Nunca era nada connosco. E a batalha para nós só começou agora. A batalha que se trava por mais um amanhã, só mais um, para aumentar uns centímetros ao ecrã de televisão. Para aumentar uns metros à sala e já agora mais uma casa de banho para as visitas poderem comentar que não gostam dos azulejos.

Não sobra tempo, não sobra tempo para nada."Lá no emprego não me vão deixar faltar mais um dia, mãezinha, por favor fica-me com a menina. Sim? Juro que para a semana o Luís te dá um jeito ao esquentador. Desculpa vir de corrida mas só vim buscar a miúda. Não deixei nada preparado para o jantar e a roupa está pendurada a apanhar chuva... - Caramba, mãe? Ainda por cima o meu quarto está na mesma, mãe! Não podias ter deitado fora o meu quarto para não sentir esta vontade estúpida de me deixar ficar? - Os pais do Luís fizeram uma salita no quarto dele, para o pai ver a bola à vontade. Não gostavas de ter uma televisão só para ti? Se o subsídio não se for todo embora, juro que te ofereço uma, para poderes ver a novela. Olha... Ficas com o meu quarto para a tua televisão. Faz melhor ainda, muda de quarto! Beijos mãe, até amanhã!"

A luz intensíssima dos projectores na Praça do Comércio denuncia restos de seres humanos caídos pelo chão, por entre as arcadas. Sim, restos. Sobras da sociedade, envolvidas em cobertores velhos que já não cheiram a nada, de tanto que cheiram a tudo. Como lhes é possível dormir? Adormecem de cansaço, apatia? A mim, as luzes cegar-me-iam.
Observo-os de longe, deste lado do microscópio. Vejo neles a letargia de um país que já mal se reflecte no brilho dos olhares. Fujo. Mas no caminho que me leva ao terminal dos barcos mora o "meu" sem-abrigo. Já só faço conjecturas vendo-o ali adormecido entre caixotes de papelão. Que mais fará durante o dia para além de dar milho aos pombos que Lisboa preferia não ter? Que fará ele para além de arrastar os pertences numa velha saca de compras com rodas?
Vi-o parado, um dia destes, no meio de numa serpentina interminável de gente à espera de mais um transporte, a ler a Visão. Será que ele já alguma vez a leu numa esplanada da praia de Carcavelos?
Ou as perguntas que faço são apenas o medo que temos da dar connosco a ler uma revista qualquer, num outro dia qualquer, com a vida enfiada às pressas em sacos? Quero cerrar os olhos. Não desejo soçobrar entre os destroços dos que dormem ao relento. E no entanto é assim que sabemos que ainda não fomos totalmente mastigados pela engrenagem. Ainda resta o medo que só se dissolve quando atingimos a mais profunda indiferença.