Circuitos fechados

Passou pelo ginásio tentando deixar lá as preocupações. O dia fora excepcionalmente cansativo. Os telefones não paravam, o telemóvel vibrava a todo momento no bolso do casaco, o ruído surdo, incessante e insuportável do escritório invadia-lhe os tímpanos como se tudo fosse parte de um teste de resistência para todos os ocupantes da imensa sala de paredes falsas.
Open space. Um modelo que sempre associara a calma até se ver submerso nele.
Talvez fosse por ser sexta-feira, pensou, e o cansaço acumulado não lhe permitisse a fuga mental mesmo com música para relaxar - tinham-lhe garantido que aquele tipo de sonoridades o distrairiam o suficiente para reinventar o open space.
Alegara uma qualquer medida médica e o termo "médica" ressoara na mente do chefe que não prestara atenção ao resto e por norma não era contra qualquer tipo de sons.
Por vezes fazia pausas compulsivas. Curiosamente a máquina do café ficava do lado de fora do open space. Escapava-se deste e atravessava o corredor, entrando numa pequena sala sem definição estética. O líquido escuro caía no copo de plástico e depois o silêncio total... Aproveitava por alguns minutos o único sofá a que a sala tivera direito e pouco depois a rotina caminhava direita a ele, novamente.
Profissionalmente gostava do que fazia. Mas reconhecia que a vida estava a adquirir uma rotação com que não contara. E recordava-se dos pequenos hamsters, nas lojas de animais, correndo, incessantemente nas suas rodinhas, sem chegarem a lado nenhum.
"A lado nenhum" talvez fosse uma injustiça. A casa era maior, o carro era maior, a família aumentara. É verdade que os via menos - ou talvez estivesse apenas demasiado cansado para os enxergar - mas isso era o mesmo que aceitar um qualquer lugar comum. Toda a gente se vê menos ao longo da vida. Até nos colegas reparava menos. Estava apenas a tentar dar um pouco mais à família e a ele próprio.
Estaria a querer acelerar o processo? Dar mais em menos tempo? Não o sabia com exactidão e não queria pensar nisso excessivamente. Mas em prol da saúde, ou de alguma mensagem subliminar, decidira inscrever-se num ginásio. Era uma maneira saudável de pensar em algo mais do que trabalho casa, casa trabalho, e o médico de família perseguia-o há anos com a ideia de que se exercitasse.
E todos os amigos estavam a ir para ginásios. Por isso falseara um pouco o exame médico com mentiras inocentes, pequenas omissões, na verdade. Todos entraram no jogo, os amigos que o avisaram que pormenores em excesso atrasariam a inscrição, o médico que despachara a consulta e ele com as suas omissões.
Nessa tarde estava a saber-lhe bem a aparente pausa. Deixou os pensamentos errarem enquanto "fazia" bicicleta. Como tinha o sentido do absurdo das situações, e o ginásio lhe surgia desmultiplicado em dezenas de espelhos, não podia deixar de sentir que saíra de um open space para entrar noutro.
Preferiu abstrair-se. O cansaço sempre fora um bom método para a civilização se tornar impotente contra as amarguras. Quando dói não se sente mais nada. E o ritmo que se impusera começara a doer-lhe. Sentiu-se tonto, sonolento. A dor no peito surgiu, incómoda, inflexível. Num ápice, os espelhos do ginásio desapareceram e à sua frente estava um vidro sujo, pejado de dedadas. Do outro lado, um imenso hamster observava-o, curioso.

3 comentários:

Anónimo disse...

E nós, no poesiaemluta.blog.pt continuamos à espera da tua saborosa contribuição...

E continua a escrever, a escrever, a escrever... Quem ganha somos nós, pobres mortais, já que tu vieste do mundo das ninfas e das musas para nosso enleio. E prazer.
Um beijo.
Fernando Manuel Pereira

Raquel Vasconcelos disse...

Uma pessoa nem sabe o que dizer... dos elogios, claro. Agradeço...

Qto ao resto tem sido mesmo uma enorme falta de tempo. Parece impossível mas não é...

Obrigada e um beijo.
RV

Å®t Øf £övë disse...

Fantástica narrativa, em que muita gente certamente se revê ao "espelho".
Bjs.