Des (Humanidades)

Atropelada. Não me ergo. Deixei de saber erguer-me. Belisco-me - vi demasiados filme - afinal as pessoas de carne e osso também se beliscam para perceber se a realidade existe. Afinal não é um sonho, é provavelmente um pesadelo. Muitas pessoas, todos desejam ver-me. A fama em forma de punhaladas no peito. Respiro mal. Esfuma-se tudo, as caras, os sons, a curiosidade. "Nome? morada?" As ruas de Lisboa... Não sabia que podiam doer tanto. "Nome, morada... idade?" Porque é que ele não se cala? E as ruas de Lisboa doem, moem. Deixe-me ficar calada. Só um bocadinho.
Gente, demasiada gente, uma multidão de camas que não são camas. Demasiada gente. Custa-me tanto respirar. Não vejo sangue em mim. Não vão dar por mim. Mas reparam porque alguém entrou e grita, "Ela pode ter hemorragias internas, doutor!" Tanta gente, tantas macas. "É giro não é? O médico?" Dói tudo. Um sorriso por se ouvir algo que não é habitual nela. "Sim mãe, é giro", imagino que lhe respondo. Salvou-me a vida. Eram demasiadas macas, demasiada gente. O sangue alastrava, invisível... A roupa desaparece. Cortam-na. Não faz mal. Já não vejo nada. "Mude-se para aqui". Deve ser para outra maca. Uma voz feminina, metálica, ordena-me o impossível. Não consigo vê-la, apenas a oiço. Não consigo. Não faz mal. Paciência.
Começam os tubos. Não os sinto entrar. "Vai ser operada" Ainda bem! A anestesia adormece tudo.
Depois começa a verdadeira realidade. O após. A dependência dos outros. Sangue. Soros. Tubos para tudo. Até para vomitarmos. Despem-nos. Lavam-nos. As arrastadeiras. A urina nos lençóis, mudados conforme a disponibilidade ou as emoções do turno de enfermagem. Alguns desses seres humanos - rio-me - escolheram uma profissão que nunca se lhes moldará à carne. A urina nos lençóis torna-se gelada e finalmente as lágrimas escorrem.
Dói tudo, está tudo revolvido, não se bebe, não se come. Os tubos saram-nos. Mas não mudam lençóis. E cede-se.
Tudo gira em torno de ritmos certos. À hora certa, as injecções certas, os medicamentos correctos. As visitas da equipa médica. A nudez sem aviso. Retiram-me os lençóis como se não estivesse ali. Já não faz mal. O irreal comanda. Até o cheiro que vem da cozinha e me dá náuseas parece pertencer a um outro mundo. As conversas tardias sentem-se. Pesadelos. Gemidos.
Somos coisas. Coisas que pedem um auxílio excessivas vezes negado. Alguém ao nosso lado pergunta "Queres ajuda?". São os seres deitados ao nosso lado, em camas iguais à nossa que se entre ajudam. Um gesto, um sorriso. Uma anedota. Não há doutoras ou prostitutas. Jovens ou velhas. É uma amálgama de seres que precisam desesperadamente de se sentir gente.

Os tubos vão desaparecendo. Uma a um. Já há bolachas na gaveta. Mas abdico delas. Pequenas baratas invadiram-nas primeiro. "Uma barata no tecto em cima da tua cama! Aí vai ela... Espera! Vai bater com os cornos!". Um esgar, é impossível não ter vontade de rir. Hoje as baratas. Ontem o pequeno rato dançarino. Comenta-se que durante a noite teria entrado na cama de alguém. Usou-se insecticida para "desratizar a situação". Como não há nada de novo e a rotina é sempre a mesma e o rato torna-se-me numa mini atracção neste circo de loucos. Parece um hamster. "Isto é que são ratos?", penso, "Olá, pequeno rato".

Numa cama morre alguém. Desinfecta-se tudo. A vida - a dos outros - segue em frente. Lá muito ao fundo, e é tão perto e tão longe, alguém que se mantém sempre mudo fixa uma arrastadeira, negando-a. Afinal enganou-se. Um erro fatal quando se é uma coisa. A idade avançada tolheu-lhe o pedido rápido. "Afinal não queria... É mesmo porca!", conspurca-nos a todas a voz de uma das "nazis".
Catalogara-as a todas. Assim que as dores são aceitáveis, o vazio que decorre entre visitas dá-nos um poder de observação extremamente aguçado. Até a médica estagiária fora catalogada. Miúda acanhada perante nós. Porque as temidas eram as enfermeiras. Observavam-se subornos - pequenos presentinhos - de mulheres que tentavam obter "melhor" tratamento. Catalogara os turnos, as mulheres de bata branca. Algumas, poucas, eram pessoas a sério. E quando se está à mercê de todos, uma pessoa a sério é imprescindível. Outras, secas mas eficazes. Uma ou outra... real. Aquela ali, aquela... era sempre alegre. E as "nazis"... neuróticas que achavam que um dia já tinham estado também numa cama a estagiar para coisa, e isso lhes dava o poder de nada sentirem.
Talvez por isso... nunca tenha esquecido os cuidados intensivos. Estava-se entre a vida e a morte mas havia por lá gente a sério. Seres humanos, escrito a maiúsculas....


Dezembro de 1985. Lisboa.

Urgências. Porque é urgente. Outro hospital. Outras paredes sujas de apatia. Um silêncio diferente porque se está na periferia. A letargia contagia-se a todos os seres que observo. "Tome..." - bebo o líquido amargo - "Já está? Boa tarde...". Não há um olhar.

Janeiro de 2005. Barreiro.

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