Futuros em duplicado

Os miúdos sucedem-se, as crises precedem-nos e nenhum problema será resolvido a fundo ou eliminado. Aprendem eles, e eu a lidar o melhor que lhes é possível com um futuro que jamais integrará determinados objectivos do passado. Presenças a dois. Que eles desejariam ter podido manter por mais que alguns minutos breves que agora lhes é permitido sentir nos momentos em que são trocados de mão. De tempos presentes e que ainda estão por ser nem os imaginavam. Mas adivinharam-nos às cegas e vêm parar-me aos braços, com a inocência reduzida a metade.

Aos pais falta-lhes a aliança, o espaço ocupado no dedo anelar. Notam-se os dias de praia e o vazio deixado pelo aro dourado. E muitas vezes nota-se a falta de vontade para assumir os espaços em branco, o que corresponderia a algo que prescreveria a muitos. Mas eles preenchem-nos na mesma, quer seja na escuridão ou na raiva contida e em silêncios, quase sem darem por isso. O que sei é que nessas alturas também enfrento olhares de menino grandes que precisam de crescer. Os pais. Perdidos durante algum tempo nos espaços em branco que estão determinados a esconder nem que seja com fita-cola. Os pais. Porque os filhos se tornaram adultos. Passaram a saber o que querem. Mas não podem proferir pareceres em conselhos familiares. São crianças. As crianças são por definição seres expostos a futuros que raríssimas vezes decidirão.

Os pais separam-se e evoluem, sem retrocesso, a sós. Cada vez mais longínquos do que seria a dois, a educação dos filhos. Convencidos, no entanto, que por ajustarem algumas agulhas será possível manter o esboço primitivo. E os filhos, atafulhados de amor em duplicado e triplicado - e ódios silenciados - transformam o coração em caixas Tupperware, que abrem ou fecham consoante o que páginas autenticadas numa conservatória, ditaram. Alguns caracteres definidos sem mágoas exteriorizadas em voz alta ou apenas pela lei. Hoje, levanta-se a tampa da caixa lilás porque se fica com a mamã. Amanhã, abre-se a caixinha azul porque se está com o papá. As emoções passam a ser às cores. E os restantes familiares acabam noutras tantas caixas de tonalidades diversas. Já não se vai para casa.

"A minha casa" é demasiado curto. Não explica nada. Está-se em casa da mãe, do pai, dos avós, dos tios ou dos primos. São muitas casas ou nenhuma. Sem ser como casal, os pais vêem os segundos escoar-se-lhes por entre os dedos. Um sabe do trabalho de casa e o outro da aula de natação. Um diz que se come um gelado e o outro trata da ferida que sara ainda nem se agarrou na mochila para se ir embora. Os miúdos aprendem a viver de mochila às costas. Enfiam nela roupas, valores e mágoas difusas. Aprendem a adaptar-se ao que nunca quiseram. Aprendem a aceitar ou até a rodear as normas que cada pólo gera. Muitas vezes riem, algumas choram. As crianças dos quartos cheios de brinquedos, acumulados em prateleiras, caixas, gavetas e baús, e por fim esquecidos. Os miúdos de sonhos em quartos reeditados, das colecções infindáveis de bonecas, carrinhos e telemóveis. Que vão sabendo de que é feito este novo amor dos pais. Das recompensas pelas horas que passam de mochila às costas de uma casa para a outra. Da vontade de os ver sorrir sem doer.

O facto de não os poder observar nas respectivas casas deixa-me a adivinhar pela metade. Numa hora, confissão, medos, lágrimas ou sorrisos que surgem dos contornos das palavras que consigo resgatar. Com maior ou menor mérito. Conversam longamente comigo, os garotos de vidas, casas e quartos em duplicado. Dos sentimentos ao cubo. E até os pais que já alcançaram algum equilíbrio nas suas próprias vidas, têm que aceitar que estão a amar e a educar filhos com vidas multiplicadas até ao infinito.

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