Papel mate. Brilho digital.

O comboio esvazia lentamente. A escuridão não permite antever as estações, somente o hábito mental da contagem dos tempos, deixa o cérebro ir adivinhando. Abre portas, fecha portas. Na carruagem restam dois companheiros de viagem, dois homens, daqueles que a noite transforma em seres amorfos. As horas galopam na alma de Mariana. É de noite que ela sente mais medo daquilo que acha que poderá nunca vir a ser. Olha através do vidro da janela… só o negro da noite… nem sabe porque repete um gesto tão sem sentido. Vinte e três horas. Iníciam-se as horas sem esperança, as horas que se escoam por entre os dedos. E Faltam tão poucas para que o ritmo diário se entranhe novamente…

A luz, mais forte do que o habitual, impede Mariana de fechar os olhos. O cansaço apático em que geralmente se encontra ao regressar a casa acaba sempre por lhe dar alguma paz. A tensão torna-se menos espessa. Mas a luminosidade incomoda-a. Um íncómodo imperceptível, que a torna mais desperta. Foi um dia complicado na agência. Demasiado cansativo, com pessoas demasiado alteradas, demasiado mimadas pelas hierarquias vigentes. Uma sexta-feira “para esquecer”.

No banco ao lado, a pasta com o iBook recorda-a contantemente o trabalho que leva para casa e que não lhe apetecia nada não ter trazido. Publicidade, essa profissão diabólica… Espera que o fim-de-semana seja mais produtivo do que foi a semana na agência. Terá certamente menos pressão. Embora seja essa mesma pressão que a faz esquecer os sons distantes, que lhe demonstram, que a vida lá fora continua, sem precisar dela.

A luz, na carruagem, baixa de intensidade. Mariana deveria ter deixado o frio do lado de fora, mas este, pareceu de alguma forma acompanhá-la até ao interior morno da carruagem. Retira o portátil da pasta. Esquece o medo dos roubos, e que a noite já só existe para disfarce da crueldade humana. Observa o iBook, e pensa que os todos os seus sonhos são tão efémeros. Reduziu os sonhos a meros desejos materiais. Uma vida profissional móvel, que levou tão pouco tempo a concretizar. Pouco mais que o telemóvel, pouco menos que a “Classe A”.

Mas o iBook é lindo… e tão efémero também... Daí a uns meses sairá outro melhor, mais rápido, mais bonito. Mais efémero ainda…Um simples “click” numa tecla e o sistema operativo inicia-se. Fixa o azul escuro do desktop. E se olhasse para esse mesmo desktop e ele não fosse azul escuro… e estivesse lá a foto do filho? Seria ela a mesma pessoa? Nunca tinha sido muito dada a tais extravagâncias visuais. A quantidade de fotografias que espalhamos por todos os compartimentos da nossa vida, dar-nos-ão a medida exacta da falta que sentimos de alguém? Ou será, que é exactamente o oposto? Uma forma de não esquecer, que compartilhamos com esse alguém, um espaço, que em tempos foi só nosso?

Mariana tem em casa um enorme álbum de fotografias, bem organizado - como em tudo nela, como em tudo na sua existência - fotos datadas, explicadas e coladas sobre folhas grossas, pretas. A única coisa que vai contra esse catalogar metódico são os próprios instantâneos. A preto e branco, de colorido forte ou de cores desmaiadas, vêem-se os sorrisos, os risos, as lágrimas, as férias, os aniversários, os nascimentos. Momentos sobre os quais se vai construindo uma vida. Cada imagem representa um fragmento do passado que o constante folhear do álbum grava ainda mais fortemente na memória.

Percorre a dock… recorda-se vagamente que o marido andou de volta de um novo programa, para arquivo de imagem. iPhoto. Sempre foi avessa a trocar as suas velhas fotos impressas por imagens digitais, tão facilmente adulteráveis. Causa-lhe a sensação de enfrentar um qualquer conceito de destino. Ela que todos os dias, na agência, tenta manipular o querer dos outros, manipular as certezas individuais de cada um.

Lança o iPhoto. No ecrã surgem-lhe os olhos do filho, esses olhos castanhos e risonhos. Olhos meigos que conhece tão bem, que a fitam vezes sem conta, da mesma forma que neste preciso momento. Uma fotografia bela, bem conseguida, um verdadeiro grande plano da felicidade, da inocência. Mariana sorri e saboreia de seguida imagem a imagem. Revê-se grávida, revê-se no olhar do filho, revê-se junto do homem que surge a seu lado. Revê-se nesse álbum de imagens digitais. Esquecida do cansaço e das dúvidas.

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