"pdi"

A "puta da idade"ou a ironia para a inevitável crise dos trinta quando plenos de dúvidas existenciais sobre o que parecia ficar por satisfazer, esta vestia tão bem as culpas de tudo. Até cada pequena ruga era registada e guardada num ficheiro com extensão "pdi". Sentíamo-nos protegidos por uma saudável cortina de insanidade juvenil. Com rigor dir-se-ia que nada nos atingia a não ser a impaciência própria da juventude, com aquelas dúvidas que assomam vagamente os planos traçados, e quem sabe, a noção de umas quantas semi-finais inconclusivas.

Entendo agora* que não era nada disso. A "puta da idade" é olhar em redor e vermo-nos tal como também somos, esboços falíveis de vidas labirínticas. Éramos tão jovens... Possuíamos portões de madeira maciça - fechados a sete chaves - e protegíamo-nos da passagem do tempo, das mortes emocionais dos incógnitos, das agonias que empurram tantos e tantos para as esquinas que habitam as sombras... Sombras que desconhecíamos.

Era demasiado fácil. E enxergamos hoje - sem fuga - que as portadas se desmoronam com inexaurível exactidão. Fomos delapidando o tempo em corredores de imaginários castelos de areia, e agora, vida e morte, apresentam-se-nos à porta e ensinam-nos que a tal "puta da idade" não é o que julgávamos. Não... não é uma brincadeira de miúdos imortais...

E eu? Que pensava? Enfrentava o meu reflexo no espelho e era só eu, sem rugas, só revolta pessoal. Era dona e senhora de uma legislação própria sobre a angústia. E abruptamente a revolta, a angústia e o destino dos outros emergiu arquejante, numa fúria assassina e arrasou as marés domadas da minha existência, invadiu-me e defronto-os desprevenida. Com medo. Medo de encarar quem quer que se reveja no reflexo das lágrimas que não consigo estancar. Porque dói, porque o sofrimento dos outros se tornou real. Porque não os quero a sucumbir perante mim, quero-os em concursos idiotas a ganhar felicidade a rodos.

Envelhecer seria tão simples se a passagem do tempo se fizesse apenas para nós. E quero gritar para não colherem flores, para apenas sentirem a sua fragrância e as tingirem de matizes inéditos, nessa imagem aparentemente banal sobre fruir os momentos belos que nos são dados, a meio de jornadas por encerrar.

*Poderia não explicar mas desta vez creio que o farei. Alguns de nós passamos parte da nossa vida intocados, como se "sofrimento" se lesse apenas em livros ou em filmes melodramáticos. Ou vemos os telejornais e já estamos anestesiados... Até que um dia a realidade nos bate à porta. Chamei-lhe envelhecimento, mas não é necessário que se tenha esta ou aquela idade. Pode ser agora, amanhã, anteontem... E por vezes não é um amigo ou um familiar ou um conhecido... são todos ao mesmo tempo. A vida prega-nos partidas porque lhas está a pregar a eles. Por vezes, egoisticamente, desejávamos colar os cacos e reconstruir a redoma em que nos escudáramos. Uma redoma que não suportou e estalou. Observamos o horizonte, a vida - a nossa e a deles - com os cacos nas mãos, apertamo-los até que sangremos. E sangramos lágrimas também porque há destinos que não podemos mudar e outros que não desejam ser mudados.

2 comentários:

Anónimo disse...

Este texto está belissimamente escrito. Parabéns.
Se a PDI te faz escrever assim, então continua.

RG

Raquel Vasconcelos disse...

Mais uma vez, muito obrigada.
Por vezes emoções muito fortes obrigam-nos a materializá-las em palavras.