Analogias virtuais...

Sente-se só. De pé, entre as paredes pontilhadas de fragmentos de vida - fotografias, recortes de revista, post-its e maquetas - repara no piscar das minúsculas luzes do modem que lhe mostram que este iniciou o seu mutismo. Não poderá durante demasiado tempo, sabe, caminhar pelo corredor - é assim que ela imagina o mundo virtual, um corredor por onde todos se passeiam, falando-se ou não, numa multidão de vozes quase sempre sem som e tantas vezes anónimas, ou quem sabe, fazer apenas fazer uma pesquisa, espreitar um blog, uma notícia...

Sente medo. Observa o velho Mac - um computador que a que o tempo roubou pressas mas que ainda ostenta orgulhosamente o logo colorido da maçã - mantém-se silencioso. Acorda-o com um toque suave no rato. Não quer ficar sozinha... Por toda a casa encontrou vestígios recentes de vazio. Um livro, um cinzeiro ou uma moldura que deixou o seu traçado no pó fino que permanece nos móveis. Cada objecto transformou-se numa peça de partilha, parte de um puzzle que nunca irá completar. Achava-se mais forte, mas o medo surgiu mascarado de noite e de sombras. Já não pode refugiar-se no corredor virtual.

Pára no tempo. Leu em criança demasiados contos de fadas, e já adulta, coleccionou do mundo real apenas o que lhe interessou. Recusou-se a catalogar o cinzento do mundo e remeteu-o desordenadamente para caixas de cartão, que mantém num sótão reservado para o que considera proibido. E um dia, abruptamente, começou também a riscar o futuro - um futuro imaginado, que em tempos se entretinha a desenhar delicadamente, como se estivesse na primeira classe a treinar o alfabeto - riscou-o com violência, até rasgar a folha. Mas riscou-o já demasiado autêntico.

Fixa o ecrã. Na vida não se fazem rascunhos, não há "maça, z", nem "control, z". Não se fazem updates à felicidade ou desfragmentações ao sofrimento. Hipnotizada pelos pensamentos, projecta mentalmente circunferências, vectores sem alma ou defeito que refaz na perfeição, como se fosse possível a perfeição se imitada por uma máquina. É fácil gerir a nossa mente perante um documento em branco, que em nada nos questiona. Esse vazio de cada novo documento parece despertar-nos a capacidade de recomeçar. Alguns toques no teclado e no ecrã os círculos adquirem, aleatoriamente, tonalidades e transparências suaves.

Relembra. Há um ano atrás, o primeiro disco rígido do computador morreu. Alguns gigas de tudo e de nada desapareceram. Durante dias catalogou o que se encontrava preso no interior da peça fria e inacessível de hardware, cada fragmento de informação que nunca mais seria imagem, som ou vector. Perante a inevitável perda de toda a informação, refez os trabalhos a decorrer à data do incidente e arquivou os restantes - aqueles que mais sorrisos tinham feito surgir - na área que o cérebro dedica ao não esquecimento.

Sorri. Sempre se refugiou em analogias para assimilar o traçado invisível da vida - como em criança entendeu, através dos infinitos numéricos, que o seu querido céu de brilhos vários também não tinha fim. É agora uma máquina - um aglomerado de plásticos e hardware sem vida - que a ensina. O passado permanece, nunca desaparece no vazio. Transforma-se em fragmentos de memória.Respira fundo. Retira finalmente todas as ligações ao modem.

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