Caixotes e caixotes por decifrar...

O conjunto de chá da loja do Gato Preto talvez esteja em cacos... Não os tachos, que são inquebráveis e nem uma amolgadela lhes embaraça o brilho do aço - pensei que os querias mas sei que os deixaste.Livros por reler... Memórias enfiadas à pressa entre esferovite e pedaços de jornal para acordarem intactas quando o x-acto, os olhos, as mãos e a coragem desselassem tudo...

O cheiro do mar persegue-me a cada caixote que quero abrir, como incenso que se incendeia sem permissão. Deixei o pó acumular-se. O perfume do mar está presente em todas as linhas do meu destino e o que seria de mim, a pressenti-lo, presa na teia em que me enredei... Poderia gritar. Mas não faria sentido desperdiçar palavras no vazio que outrora foi uma multidão, nem em parágrafos violentos que ficariam sem resposta.

Hoje nem sequer te recrimino. Em contrapartida também não o faço comigo mesma. Poderia justificar-me, mas creio que estamos em pé de igualdade. Apenas te foi mais fácil censurar a minha desistência tão evidente. Porque a tua foi gradual e imperceptível... Sem nome nem apelido. Não foi? Sempre conheceste todos os atalhos de cor enquanto eu pairava pelo desconhecido. E como vagueei... Desejo? Não sei... Anseio? É-me indiferente. Mal me quer, bem me quer, mal me quer...

Certamente que "nós", deixámos muito antes de o ser. Pertenceste sempre a um conjunto de factos óbvios. Barro que o artista usou para uma obra há muito delineada, consumada. Parte de um todo, invisível para alguns, é certo, mas apreciado por muitos. Eu sentia-me só, ínfima... Fragmento desse mesmo barro, escorreguei das mãos do artista e cai com um baque. Um pontapé inesperado obrigou-me a rodopiar pelos ladrilhos argilosos qual pião. A indolência interveio. Quedei-me num canto, entre a poeira dos dias que acontecem, aguardando que o artista reparasse em mim... e me transformasse em cabelos soltos ao vento - esse vento que se desprende do desconhecido - antes que o tempo que fugia me encontrasse já pedra. E o tempo passou...

Sou e sempre fui paciente...

Mas os caixotes têm que ser decifrados! E o artista deverá reparar em mim! Grão de areia nestas páginas ambíguas! Bem me quero...E grito! Que interessa se aparento estar emudecida! Grito!E sopra uma brisa e o artista desvenda-me e abro caixotes e já é de manhã e a claridade esbate-se serenamente nos cabelos e no vento que o artista modela.

O oceano aguarda-me...

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