Feeling Blue

Da porta posso observar os computadores e os seus respectivos donos temporários, gente miúda com o brilho do momento presente no olhar. Fixo os rostos atentos e tento dissimular a minha indiferença que os vai desfocando no meu campo de visão. Sei que hoje, como sempre, não se limitarão a absorver informação, colocarão dúvidas e argumentarão. E hoje verbalizar seja o que for, parece-me extenuante.A sala “Arco-íris”, como lhe chamamos, fora planeada a pensar nas classes mais jovens, aproveitando uma folga financeira da escola e a chegada ao mercado dos novos iMacs, “maquinetas” da Apple com um colorido inspirado numa escala Pantone. O restante material, das cadeiras aos tapetes para mouse, tudo combina com o ar alegre dos computadores.

Um homem não chora...

O sol atravessa a sala e a porta escancarada recorta a minha silhueta contra os meios-tons sombrios do corredor. Murmuro uma desculpa esfarrapada e viro-lhes costas. A eles, à sala que concebi, às máquinas dotadas de sistemas que tentam igualar a perfeição, à revelia da realidade, desafiando-me. Todas aquelas cores me gritam, sugerindo-me falhas humanas. No corredor, cruzo-me com um dos alunos. Na escuridão ampliada pela sensação de túnel, consigo perceber uns olhos azuis no rosto de traços infantis, sustentando-me o olhar com a mesma confiança ilimitada com que também eu encarava em criança, os adultos. As suas aparentes certezas proporcionavam a segurança necessária ao meu ainda diminuto mundo. Crescera a confiar na infalibilidade dos adultos, das suas convicções, que transformara em verdades absolutas, estruturando-as posteriormente para não serem submetidas a testes, quer pelos outros, quer por mim próprio.

Um homem não chora...

Num universo paralelo, com gestos esquivos e mal me fitando, ela começara por dizer que estava cansada, farta… Li-lhe no rosto o final do discurso e percebi que não valia a pena argumentar a favor do que, naquele preciso momento, deixara de existir. O tempo parou. E com ele a minha racionalidade. Com a saída dela, ruía o que edificáramos. Ela denominava-o agora de utópico. Perdi-me numa raiva profunda por não ter antecipado a situação. E a raiva espraiou-se pela humanidade, retornando depois a nós, como num jogo de pingue-pongue, contaminando tudo à nossa volta. Afundava-me na incapacidade de alterar o que quer que fosse. Sabia que ela não estava cansada ou farta. Simplesmente desertava, preferindo algo lhe permitisse o embalo monocórdico da segurança.

Um homem não chora...

Saio do metro, caminho sem vontade por uma avenida que não parece dizer-me nada e observo vagamente a fachada em pedra, a imensidão suja do velho edifício que num outro dia qualquer iria absorver-me. Mas hoje não me interessa se Lisboa se tornou suja. Os estores estão fechados. Empurro a porta. Apenas. Máquinas. Máquinas que permanecem silenciosas, atentas a qualquer impulso humano que as faça acordar para a vida. O atelier é uma reprodução mais amadurecida da sala “Arco-íris”. A criatividade é uma constante de matizes diversos, e fizera sentido aproveitar a genialidade do design dos “Macs”. E quando o atelier adquirira vida própria, transformaram-se no centro das atenções de clientes e amigos. Cada um dos dois escolhera a cor com que se identificava mais, e como se fossemos decoradores de interiores diplomados, e não publicitários, centráramos toda a evolução da personalidade visual do atelier, nos iMacs.

Um homem não chora...

O silêncio é tremendo. Sinto uma agonia que me devora. Ela já cá esteve. Riscou o “Magenta” da minha vida sem olhar duas vezes para trás. Resta apenas uma tonalidade… Encaminho-me até à mesa onde preparámos centenas de maquetes - que agora parecem ter perdido o sentido - e agarro no primeiro guia Pantone que encontro. Os sentimentos arrastados para uma voragem de vazio. Escorrego contra uma parede preenchida por maquetes, fotografias, datas, brieffings, arrastando tudo comigo. Arranco todas folhas que contenham magentas – sejam cem por cento puros ou contenham restos de cyan - como se fosse possível arrancar-me da alma a raiva contra os que desistem sem dar luta. Um homem não chora... Mas hoje não sou nem homem nem mulher. Sou o “Azul” que não pára de gritar à minha volta.

Hoje permito-me chorar. Amanhã comprarei um novo guia Pantone.

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