Vejo-te ainda,

em cada objecto que foi teu, e teima em permanecer nesta casa. Vejo-te nas sombras. Vejo-te no branco turvo do olhar dos outros, na saudade que torna todos os seres intemporais. Observava-te tantas vezes calada. Preferia que não reparasses em mim. Escolhia, sem dúvida, não te encarar. Cresci sem ti e nunca te apercebeste disso. Não saberia que dizer-te. Ainda hoje, recuso olhares que descansem no meu. Sinto-me gelar, torno-me irracional, perco-me entre medos que não sei nomear.
Teria sido tudo mais simples se tivesse dito a tempo que te amava. Mas era tão infantil que me contentava em coleccionar fugas.
E naquela manhã voltei a fazê-lo. Tinha à minha frente um copo de leite e um croissant misto. E tu? Bebias café? Não me recordo. Respondia tentando centrar-me num texto bem delimitado. Mas driblaste-me e acabámos por falar de morte. E falar da morte de outros, pareceu-me uma boa maneira, de mais uma vez não te enfrentar. Deixei-te seguir por aí.
Em poucas frases, acabaste por colar a morte à tua infância. O enquadramento tornou-se esse, a tua infância. Também tu, claro, também tinhas os
teus medos. Provavelmente não como os meus, sempre me pareceste muito mais temerário do que eu alguma vez fui ou terei coragem de ser.
Imaginei-te a correr pelo pó da estrada, atrás do homem das cantigas, tal como descrevias. Recriei a cena, como se olhasse para uma fotografia desbotada, amarelada.
Sabia que adoravas viver. Embora tivesses a percepção de que a morte dançava perto de ti, por entre as cortinas de um imaginário salão de baile onde te encontravas e de onde não te deixavam sair. E se eu fosse, nessa época, apenas um pouco menos infantil, teria percebido o quanto te negaras de todas as formas a aceitar o convite, o quanto a vida realmente te fascinava.

Observei-te, já imóvel, ainda nessa tarde, e assim ficaste.

Transformei os instantes desse dia numa série de polaroids. Ainda me recuso a aceitar esse pó em que te tornaste. Ainda me recuso a aceitar o vazio súbito, a impossibilidade de emendar o passado ou vencer o futuro. Vivo no presente, mas à tua procura. A vida tem-me dado tempo para tentar entender, mas ainda vejo os teus olhos nos olhos dos outros, e continuo a fugir. E sei que nas minhas fugas contantes, cometo os mesmos erros com outros, transformando-os em fantasmas, antes do tempo, como fiz contigo.

Observo a prateleira onde te encontras, na velha estante. O gato cinza dos bigodes longos que ocupa agora a casa, contorna-te cuidadosamente. Pára e fita-me silenciosamente.

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