Indiferença

Os projectores que iluminam as arcadas da Praça do Comércio ferem-me a vista. Só abrando o ritmo longe do seu alcance, para poder observar o desenrolar dos preparativos para a passagem do ano. Um café em dias especiais como os que se vão seguir, custa um euro e meio numa tenda qualquer disfarçada de esplanada da moda.
Mas em noites vulgares, como quando por aqui passo, não me interessa porque está fresco e nem sequer bebo café. Faltam poucos minutos para o barco partir. Tonalidades coloridas invadem o património da cidade. A todo momento, e porque é Natal, espero que surja um daqueles anúncios a créditos, casas, electrodomésticos.
Revivo saudosista o encerramento do "Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura", em que misturada com a mole humana que invadiu o Terreiro do Paço, assisti ao mais belo fogo de artifício que permanece naquele conceito um pouco gasto que dizem ser o nosso imaginário. As festas, fossem quais fossem, eram mais a sério. Não sabiam tanto a atordoamento mental. Estava-se ali e pronto. Não se cogitava se o metro devia ou não esventrar a cidade, se esta estava ou não esventrada, ou se os barcos que ali atracavam eram carcaças envelhecidas.
Os barcos. Queixam-se agora as gentes que não se pode sentir o vento ao vivo. Mas o progresso tem um preço. E há quem prefira uma viagem curta e confortável, a sentir o vento, porque às onze da noite já se está demasiado esgotado para pensar em mais alguma coisa que não seja metro, autocarro, metro, barco, autocarro, casa.
Abram-se as janelas depois em casa e sinta-se o vento e a noite. E dê-se a volta ao mundo durante algumas horas de sono que adiam o dia seguinte. Depois recomeçará tudo novamente. Sabido que é, que os amanhãs cíclicos são a mais pura das verdades. Agora. Que antes não era nada connosco. Não fazia parte do passado ou do presente, e o futuro era muito lá ao fundo.Víamos as rugas apenas nos outros. Mas a realidade é que não víamos nada. Nunca era nada connosco. E a batalha para nós só começou agora. A batalha que se trava por mais um amanhã, só mais um, para aumentar uns centímetros ao ecrã de televisão. Para aumentar uns metros à sala e já agora mais uma casa de banho para as visitas poderem comentar que não gostam dos azulejos.

Não sobra tempo, não sobra tempo para nada."Lá no emprego não me vão deixar faltar mais um dia, mãezinha, por favor fica-me com a menina. Sim? Juro que para a semana o Luís te dá um jeito ao esquentador. Desculpa vir de corrida mas só vim buscar a miúda. Não deixei nada preparado para o jantar e a roupa está pendurada a apanhar chuva... - Caramba, mãe? Ainda por cima o meu quarto está na mesma, mãe! Não podias ter deitado fora o meu quarto para não sentir esta vontade estúpida de me deixar ficar? - Os pais do Luís fizeram uma salita no quarto dele, para o pai ver a bola à vontade. Não gostavas de ter uma televisão só para ti? Se o subsídio não se for todo embora, juro que te ofereço uma, para poderes ver a novela. Olha... Ficas com o meu quarto para a tua televisão. Faz melhor ainda, muda de quarto! Beijos mãe, até amanhã!"

A luz intensíssima dos projectores na Praça do Comércio denuncia restos de seres humanos caídos pelo chão, por entre as arcadas. Sim, restos. Sobras da sociedade, envolvidas em cobertores velhos que já não cheiram a nada, de tanto que cheiram a tudo. Como lhes é possível dormir? Adormecem de cansaço, apatia? A mim, as luzes cegar-me-iam.
Observo-os de longe, deste lado do microscópio. Vejo neles a letargia de um país que já mal se reflecte no brilho dos olhares. Fujo. Mas no caminho que me leva ao terminal dos barcos mora o "meu" sem-abrigo. Já só faço conjecturas vendo-o ali adormecido entre caixotes de papelão. Que mais fará durante o dia para além de dar milho aos pombos que Lisboa preferia não ter? Que fará ele para além de arrastar os pertences numa velha saca de compras com rodas?
Vi-o parado, um dia destes, no meio de numa serpentina interminável de gente à espera de mais um transporte, a ler a Visão. Será que ele já alguma vez a leu numa esplanada da praia de Carcavelos?
Ou as perguntas que faço são apenas o medo que temos da dar connosco a ler uma revista qualquer, num outro dia qualquer, com a vida enfiada às pressas em sacos? Quero cerrar os olhos. Não desejo soçobrar entre os destroços dos que dormem ao relento. E no entanto é assim que sabemos que ainda não fomos totalmente mastigados pela engrenagem. Ainda resta o medo que só se dissolve quando atingimos a mais profunda indiferença.

1 comentário:

Eremit@ disse...

Vim a ler, desde a primeira crónica até esta.
Podia continuar. Há qualquer coisa de viciante neste teu olhar que estando dentro se reposiciona de fora para transcrever o que só por dentro é sentido, vivido.
E tudo em nós é mastigado, triturado, e no fim expulso numa dor aberta...
Por isso agora paro. Porque as feridas necessitam respirar, necessitam que o ar lhes toque e doam ainda mais, para depois se permitirem sarar (um pouco).

ès uma pessoa (não encontro outra palavra. Desculpa) lixada. E essa tua consci~encia esse teu olhar, igualmente "lixado" também te lixa descarnando a pele na fricção, constante e contínua, até ao tutano.

Fraterno abraço